Caetano Veloso – Transa (1972)

02/03/11

 

No dia 27 de dezembro de 1968, os maiores expoentes da música brasileira, Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram presos pelo regime militar sem qualquer alegação plausível. Obviamente suas participações em passeatas, movimentos estudantis e principalmente, suas condutas revolucionárias, não eram vistas com bons olhos pelo governo. Os dois passaram por celas de diversos quartéis no Rio de Janeiro, onde tiveram suas vidas marcadas para sempre pelo cárcere.

Durante este período, foram compostas em cela algumas canções que ficariam muito conhecidas, como “Irene”, onde Caetano canta a saudade da alegria e de sua irmã (Eu quero ir, minha gente / Eu não sou daqui / Eu não tenho nada / Quero ver Irene rir / Quero ver Irene dar sua risada), e Cérebro Eletrônico, uma das mais geniais canções de Gil.

Após dois meses de confinamento, numa quarta-feira de cinzas, os dois baianos foram conduzidos a Salvador, onde passariam outros quatro meses em regime de prisão domiciliar. Na metade do ano de 1969, o governo militar, com os poderes que o Ato Institucional número 5 lhe conferiam, decidiu expulsar Caetano e Gil do país. Fora permitido, embora, que realizassem um último show para arrecadar dinheiro para sua viagem forçada.

Nos dias 20 e 21 de julho, os dois principais tropicalistas faziam seu último show em terras brasileiras antes do exílio, em uma apresentação que virou disco, o sensacional Barra 69. Poucos dias depois, Gil e Caetano eram acompanhados por militares até um avião, onde embarcavam para Londres sob a seguinte advertência: “Só voltem se forem autorizados”.

O exílio foi para Caetano tão duro quanto deveria ser.  Desenraizado à força, o poeta mergulhou de cabeça em um estado tão depressivo como a própria aparência de Londres. Em um dos artigos que escrevia para o Pasquim, direto do exílio, Caetano afirmou sobre ele e Gil: “Estamos mortos”.  Afinal, que é o exílio senão a morte do homem como cidadão.

Apesar das tristezas, em uma das noites frias em Londres, Caetano receberia um visitante que trazia milhões de abraços em sua mala, todo o carinho do povo que aqui ficou, representado pela figura de seu rei, Roberto Carlos. Naquela noite, os últimos versos de “As Curvas da Estrada de Santos” seriam sucedidos pelo mais sincero pranto de Caetano. Segundo ele, foi este o momento que tocou o rei e o inspirou para a canção “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos”.

Neste período, Caetano gravaria o melancólico disco de 1971, cuja capa trazia apenas seu rosto, fechado, e a profundidade de seu olhar, que traduzia fielmente seu estado de espírito. No mesmo ano, graças ao esforço de sua irmã Bethânia aqui no Brasil, Caetano conseguiria uma permissão especial do governo para retornar ao Brasil, apenas para assistir a missa em comemoração aos 40 anos de casamento de seus pais.

No dia da volta de Caetano, Bethânia, acompanhada do cineasta Gláuber Rocha e de Luiz Carlos Maciel, um dos fundadores do Pasquim, esperou por longas horas a chegada de seu irmão. Enquanto era aguardado em casa, Caetano

Caetano em programa de TV durante o breve regresso

passava por um interrogatório, após ser recebido no aeroporto pelos militares. Entre perguntas e mais perguntas, Caetano seria pressionado a escrever uma canção saudando a construção da Transamazônica.

De volta à Londres, Caetano convoca um time de peso para dar o passo que o consagraria como visionário cultural, revolucionário musical e semeador da libertação intelectual. Acompanhado dos amigos Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza, Caetano grava o disco Transa, sua obra de mergulhos mais profundos na alma do ouvinte e, principalmente, do compositor.


O disco

Doce como o ácido que fez Jards Macalé se apaixonar por uma Branca de Neve de cera, no museu Madame Tussaud’s, a canção “You Don’t Know Me” é um aviso verdadeiro para quem conhecia a obra de Caetano antes do disco Transa: você não me conhece. Misturando Edu Lobo e Luiz Gonzaga com desabafos em inglês e uma velha canção sua na voz de Gal Costa, o poeta faz o prefácio perfeito para o resto da obra.

Na sequência, “Nine out of ten” é anunciada por uma vinheta ao melhor estilo jamaicano. Caetano explica: “Eu e o Péricles Cavalcanti descobrimos o reggae em Portobelo Road e me encantou logo. Bob Marley e The Wailers foram a melhor coisa dos anos 70”. Foi a primeira vez em que o reggae aparecia na música brasileira. Em um samba de um pé na África e outro no sertão nordestino, “Nine out of ten” segue e faz o poeta dizer pra quem quiser ouvir: “I’m alive”.

Considerado o maior poeta barroco do Brasil, o baiano Gregório de Matos é dono dos primeiros versos de “Triste Bahia”, retirados de seu poema homônimo, do século XVII. A crescente evolução dos instrumentos e os cantos entoados nos trazem a atmosfera de uma roda de capoeira, diretamente da Bahia ou do outro lado do oceano.

Em certa manhã, o poeta acordou cantando uma velha canção dos Beatles, nada mais natural para quem vivia em Londres nos anos 70. Em “It’s a Long Way”, “The Long and Winding Road” dos Beatles, “Sodade, meu bem, Sodade” de Zé do Norte, “A Lenda do Abaeté” de Dorival Caymmi e “Berimbau”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, tornam-se uma só canção, o canto mais sublime e transcedental do poeta Caetano Veloso.

A quinta música do disco é uma composição do sambista, cantor, ator e pintor carioca, Monsueto. Explorada em suas nuances mais profundas, “Mora na Filosofia” traz Caetano dando um passo à frente na melodia e estrutura musical do velho samba. “Se seu corpo ficasse marcado / Por lábios ou mãos carinhosas / Eu saberia, a quantos você pertencia / Não vou me preocupar em ver / seu caso não é de ver pra crer”.

A canção seguinte, “Neolithic Man” é tão existencial quanto experimental. Embora soe com extrema brasilidade, Caetano mistura diversos elementos musicais, ditando o clima de psicodelia. Encerrando o disco, “Nostalgia” é um blues com a participação de Angela Ro Ro, na gaita, e, como em diversas outras músicas do disco, Gal Costa.

“Transa” é sem dúvida um dos discos mais importantes da música brasileira, pela mistura revolucionária e iluminada de ritmos e elementos, e por seu contexto cultural e político. É o manifesto da capacidade de caetanear, ou seja, de driblar o óbvio e dar luz ao divino e maravilhoso. A seguir, segue um trecho do documentário “Canções do Exílio: a Labareda que Lambeu Tudo”, que traz depoimentos dos principais personagens desta resenha.

Espero que gostem!

 

 

Download: Caetano Veloso – Transa (1972)